“El Rey” de Secos e Molhados: O jogo da colonização e antropofagia na Tropicália



 por Francisco Ewerton dos Santos
Mestrando em Estudos Literários

“Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera”


“O Tropicalismo é um neo-Antropofagismo”: assim definiu Caetano Veloso, em entrevista concedida a Augusto de Campos , o movimento que ajudara a fundar e deflagrar.A explosão do Tropicalismo (ou Tropicália), se deu nos Festivais da Música Brasileira, no fim da década de 60, quando “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso e “Domingo no Parque” de Gilberto Gil chamaram a atenção da mídia e do público por trazerem uma proposta inovadora em suas letras e arranjos, misturando Rock’n’roll, música experimental de vanguarda e ritmos brasileiros. Pouco depois, seria lançado o LP Tropicália, do qual participaram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Torquato Neto, Rogério Duprat, Os Mutantes, etc.

Neste texto, procuraremos investigar mais afundo esse que é “antes de tudo um movimento dessacralizador. Irônico e parodístico” (SANTANA, 1977, p. 233), segundo nos diz Afonso Romano de Santana. Observar a importância deste movimento para a formação da (contra-) cultura brasileira no que se chama modernismo tardio ou pós-modernismo, e sua poética dessacralizadora que mescla o popular e o erudito, que incorpora o “canônico” a “cultura de massa” (ou vice-versa), que deglute os monumentos de cultura das fontes irradiadoras (seja do colonialismo ou neo-imperialismo), carnavaliza-as e descentra sua influência.

A partir daí, podemos observar as origens imediatas e remotas da Tropicália, que busca desde a tradição barroca, do já antropófago Gregório de Matos, retoma as propostas do modernismo de 22, principalmente as lançadas no “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade (“Tupy, or not Tupy...”) e, dessa forma, se relaciona com outros movimentos de vanguarda de sua época, como o Cinema Novo e o Cinema Marginal, o Poema-Processo, a Poesia Marginal, a psicodelia hippie, todos marcados pelo seu aspecto experimental e iconoclasta, que mescla elementos heteróclitos, de diferentes linguagens e contextos, para criar uma arte autêntica de caráter híbrido. É importante ressaltar que tudo isto se deu em plena ditadura militar, e a estética arrojada da Tropicália era também uma forma de velar uma crítica, dessa forma, o protesto social adquiria caráter estético, de maneira que forma e conteúdo se uniam em uma proposta revolucionária que extrapolava para o comportamento: as cores, roupas e danças, a libertação dos instintos e o caráter muitas vezes andrógino dos artistas dialogavam em um sistema de signos constituindo uma mensagem subversiva.

O grupo Secos e Molhados surge pouco depois da deflagração da Tropicália. Formado por Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, lançaram dois discos, o primeiro em 1973 e o outro em 1974, trazendo ainda as concepções estéticas do movimento, evidenciadas nas performances e visual pitorescas e na musicalização de poemas de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Julio Cortázar ressignificando estes textos transpondo-os para outra realidade histórico–social e retomando, ainda, a proposta de Mallarmé, de [re]junção entre música e poesia.

Dessa forma, o Secos e Molhados talvez refine ainda mais a proposta tropicalista de transgressão estética e comportamental, trazendo em suas letras críticas veladas através de jogos intertextuais, confirmando em suas canções a equivalência entre os termos “antropofagia”, de Oswald de Andrade, “intertextualidade” de Kristeva e “dialogismo” ou “carnavalização” de Bakhtim, e o poder subversivo que essas práticas textuais assumem por meio da paródia, quando o dominado assume a força do discurso dominante para denunciar as próprias instituições de poder, onde o nivelamento da arte dita “elevada” e a arte “baixa”, popular, é uma forma de provocar e atacar a cultura oficial, elitista e colonizada, colocando a expressão da margem no centro da discussão e derrubando as hierarquias. Isto é, antropofagia e carnavalização são meios de inversão e resistência.

Para melhor ilustrarmos essas afirmações, cabe partirmos para a análise de uma letra dos Secos e Molhados. Trata-se de “El Rey”, canção composta por Gerson Conrad e João Ricardo e lançada no disco de 1973:



“Eu vi El Rey andar de quatro
De quatro caras diferentes
De quatrocentas celas
Cheias de gente

“Eu vi El Rey andar de quatro
De quatro patas reluzentes
De quatrocentas mortes...

“Eu vi El Rey andar de quatro
De quatro poses atraentes
De quatrocentas velas
Feitas duendes”

Devemos observar, primeiramente, que o texto é permeado pela relação entre três idéias: Poder — decadência — resistência. El Rey é o signo do poder. A forma castelhana nos remete ao poder colonial: opulência, riqueza e dominação. Entretanto, o primeiro verso da canção diz: “Eu vi El Rey andar de quatro”. Neste verso entra também o elemento da decadência. O rei de quatro é a ridicularização do grandioso,e, quando no verso seguinte, lemos “quatro caras diferentes”, observamos que a palavra “cara” traz um sentido diferente de “face” ou “rosto”, pois, apesar de serem aparentemente sinônimos, a forma utilizada no texto é cotidiana, uma gíria comum em contextos informais e referente ao que é baixo, sem apresentar qualquer reverência ou respeito, então aqui a palavra “cara” aparece como índice se dessacralização.

Quatro caras: o poder se apresenta de várias formas, muda as máscaras (as personas, como no teatro grego), transforma o discurso. Assim como em um teatro, o poder muda de máscaras, e, assim como em um carnaval, suas máscaras trazem o brilho da riqueza na forma de extravagância. E, como bem traduz o barroco, o grandioso e o grotesco — a opulência e a decadência — andam juntos. O índice do despotismo surge no verso seguinte: “De quatrocentas celas cheias de gente”. Aqui vemos que o poder se despersonaliza, muda de máscaras e de discursos, mas, seja o discurso colonial imperialista, seja o neo-liberal pretensamente democrático, vemos as história dos vencedores marchando sobre os corpos dos vencidos, e a tirania aparece no fim desta primeira estrofe na forma da supressão da liberdade do outro.

A estrutura da primeira estrofe se repete nas seguinte, isto é, o estribilho inicial, no segundo verso, “patas reluzentes” aparece no lugar de “caras diferentes”, apresentando, contudo, a mesma estrutura morfológica: caras/patas, assim como diferentes/reluzentes, apresentam o mesmo número de sílabas, as silabas tônicas na mesma posição e as mesmas terminações, mantendo a cadência e a melodia do texto. Além diso, essa correspondência estrutural anuncia que também será mantida as relações de idéias, pios, “quatro patas reluzentes” podem referir-se tanto à imagem de uma montaria, símbolo de altivez cavaleiresca, ou às quatro patas do próprio rei. O reluzente da riqueza vem novamente associado ao rebaixamento da imagem grotesca do “rei de quatro”.

Cabe aqui enfocarmos a peculiaridade da palavra “morte” dentro do texto. Como podemos observar, o poema é dividido em três estrofes, duas de quatro versos, e uma, à qual nos reportamos agora, de três. Porém, na cadência da música, o lugar do quarto vrso da segunda estrofe fica vazio, ou melhor, é preenchido pelo silêncio. Silêncio expressivo. Os três pontos que seguem a palavra “morte” corroboram essa idéia. Assim, podemos compreender a morte como forma maior de violência e coação, a pena capital empreendida pelo poder, sobre a qual não se faz necessário o uso de nenhum adjetivo: diante da (ameaça de) morte, o coagido deve calar, não por respeito à autoridade, mas por medo de sua força.

A terceira estrofe traz a mesma estrutura das anteriores: após o estribilho, surge, no segundo verso, “poses atraentes”, que se relaciona morfologicamente a “caras diferentes” e “patas reluzentes” reiteram a idéia da elegância atrativa ligada à imagem de riqueza ostentada pelo rei se relacionando à extravagância humorística, por meio da imagem caricatural atribuída à elegância e à riqueza na paródia carnavalizante. E nos dois últimos versos temos novamente o índice da dominação em “quatrocentas velas”. Num primeiro momento, o vocábulo “velas” pode ser visto como índice da dominação colonizadora se associado metonimicamente às caravelas que cruzaram o oceano subjugando povos. Por outro lado, “velas” pode também ser relacioonado metonimicamente à morte. Visto por essa segunda perspectiva, a palavra “duentes”, presente no último verso, apresenta-se como uma chave de leitura por ilustrar como a resistência se integra no texto.

Este ente fantástico, muito comum na mitologia céltica, é um símbolo de travessuras, de caráter semelhante aos sátiros da mitologia grega. Dessa forma, o duende é o que satiriza, ironiza, parodia, ridiculariza, ou seja, uma figura carnavalizante. As quatrocentas velas, quatrocentos mortos — políticos, culturais, etc. —, os vencidos e marginalizados dos centros de poder, erguem-se para novamente se opor, utilizando da carnavalização como instrumento de resistência. A carnavalização, apresentando-se como paródia, isto é, reescritura e transformação de outro texto, torna-se antropofagia quando o autor imerso em uma situação desfavorável, ou subdesenvolvida, como diz Antonio Candido, isto é, na situação de dominado, assume o texto do outro, do dominador, e o transforma. Dessa forma, como diz Robert Stam:
O artista não pode ignorar a presença da arte estrangeira; tem de engoli-la, caranavalizá-la e fazer uma reciclagem para objetivos nacionais. ‘Antropofagia’, nesse sentido, é um outro nome para o que Kristeva, traduzindo Bakhtin, chamou de ‘intertextualidade’ e que o próprio Bakhtin chama de ‘dialogismo’ e carnavalização. (STAM, 1992, p. 49)
Nesse sentido, a carnavalização como resistência apresenta-se no plnao estético e textual assim como no plano social:
[O carnaval é] uma celebração coletiva que funciona como um modo de resistência simbólica, da parte da maioria marginalizada dos brasileiros, às hegemonias internas de classe, raça e gênero. Para Da Matta, o carnaval é o lócus privilegiado da inversão. Todos os que foram socialmente marginalizados invadem o centro simbólico da cidade (Idem, Ibidem, p. 50.)

E, mais adiante, afirma que “A lógica do carnaval é a do mundo de pernas para o ar, onde se zomba dos poderosos e onde reis são entronizados e depostos” (Idem, Ibidem. p. 52)

A carnavalização é a principal forma de subversão do oprimido contra o discurso oficial do dominador e é amplamente utilizada pela Tropicália e, mais especificamentes, pelos Secos e Molhados.

Nesse ponto, cabe ainda ressaltar o diálogo do texto com a tradição literária colonial, marcadamente o Barroco. Esse diálogo é já evidente na linguagem medievalista do texto, mas pode ser aprofundado observando-se algumas características barrocas dentro do poema em análise. Uma delas é o exagero das imagens. Tal característica é evidenciada não só nas imagens exóticas e grotescas, mas também com a utilização do conceptismo, recurso que cria um jogo verbal, o qual se estende a um jogo de idéias antitéticas. Assim, os números quatro e quatrocentos se referem ao exagero do poder: o quatro a riqueza que atrai, o quatrocentos a tirania que oprime. E, desse jogo de idéias antitéticas que desvela a decadência daquilo que é grandioso através da ironia e da paródia, resulta a resistência. Gregório de Matos é um baluarte dessa prática, com suas elaboradas sátiras ao governo colonial antecipou a Antropofagia oswaldiana, quando parafraseou o poema “Triste Tejo” do português Francisco Rodrigues Lobo em seu ácido “Triste Bahia”.

Dessa forma, nota-se também, o aspecto metalingüístico de “El Rey, pois evidencia a atitude do artista Latino Americano, que, ao tomar consciência de seu subdesenvolvimento , não se isola da cultura dominante, símbolo do poder colonial outrora, e neo colonial atualmente, e sim devora-a, parodia e dessacraliza, impondo sua resistência.


REFERÊNCIAS


CAMPOS, Augusto de. O Balanço da Bossa e outras Bossas. São Paulo: Perspectiva. 2003.
CANDIDO, Antonio. “Literatura e Subdesenvolvimento”. In: América Latina em sua Literatura. São Paulo, Perspectiva/ UNESCO. 1972. p. 343-362.
SANTANA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Vozes.
SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar no discurso latino americano”. In: Por uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva. p. 11 – 28.
STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Editora Ática, 1992.