Documentário de Andrea Menezes & Marcelo Masagão (Música de José Miguel Wisnik ) aborda o lugar que a escrita tem para aquele que escreve, tendo como objeto escrevinhadores compulsivos que habitam os labirintos da cidade.
Personagens do filme:
Gregório escreve como se fala, nomeando as presenças do mundo no instante em que elas estão sendo criadas.
Tatiana busca alcançar através da escrita de suas máquinas o ideal científico de um corpo sem falhas.
Orlando corrige o defeito da língua feminilizando as palavras.
São escritas muito singulares, excessivas, mas raramente lidas, pois não se adequam aos códigos já estabelecidos. Não se apóiam no sentido, não buscam uma comunicação. Subvertem as leis da linguagem, inventam palavras, manipulam as letras, modelam o vazio.
O condicionado diz estar fora do calendário e se considera “um industrial fabricante de história”.
Orlando é o carteiro de uma correspondência divina, distribuindo pelas ruas seus pensamentos no papel dos maços de cigarro que consome: “Paz cura, sexo cura. Fumar cigarro é amor porque dá prazer.”
Leo observa a janela de seu quarto e diz estar do lado de dentro e do lado de fora.
Gregório, o pai de Deus, escreve no ritmo da fala: “Sexta-feira faz um ano que meu coração fechou…”
Tatiana concebeu uma máquina de reversão do tempo denominada: “máquina salva vidas infindus infinitus”.
Por fim, Arturo escreve: “O tempo é um barco que navega na sua própria água”.
Com comentário dos editores da revista Kamikazes http://revistakamikases.blogspot.com/. O filme Zero não é vazio, será exibido nesta sexta, dia 24, às 19h, no auditório do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - que fica na Av. Gov. José Malcher, 563, esquina com Rui Barbosa, Nazaré, Belém.
Ano passado o Núcleo Interdisciplinar Kairos- Pensamento da Arte e da Linguagem, e o Coletivo Kamikaze estiveram na cidade de Breves-Pa, por ocasião do IV ECLEB (Encontro dos Estudantes de Letras em Breves). Apresentamos trabalhos, lançamos a Revista... Este é menos um registro do evento que da experiência...
III Simpósio Olhares sobre o Poético: encontro com a poesia em Max Martins
A turma da disciplina Estudos do Poema/2010 do Curso de Mestrado em Letras da UFPA realiza a 3ª edição do Simpósio “Olhares sobre o Poético”. Realizado desde 2008 sob a organização da Prof.ª Dr.ª Lilia Silvestre Chaves o evento tem por objetivo apreciar, divulgar e discutir poesia, em especial a produção poética de autores locais.
A cada edição um artista ou crítico literário é homenageado. Este ano, o poeta Max Martins foi o escolhido. Em 2008, o evento teve como homenageado o poeta Mário Faustino e ano passado homenageou-se o filósofo Benedito Nunes enquanto crítico literário.
O Simpósio deste ano acontecerá no dia 02 de dezembro de 2010 no Auditório Francisco Paulo Mendes localizado no Instituto de Letras e Comunicação – UFPA, das 08h30 às 18h. Confira aqui aoutras informações e participe!
Para cantar é preciso primeiro abrir a boca. É preciso ter um par de pulmões e um pouco de conhecimento de música. Não é necessário ter harmonia ou violão. O essencial é querer cantar. Isto é, portanto, uma canção. Eu estou cantando.
Henry Miller, Trópico de Câncer.
Por que escrever, editar, imprimir e divulgar uma revista? Porque nos consideramos artistas, criadores, agitadores de um novo movimento, mesmo que em espaço reduzido e delimitado? Até gostaríamos de estar fundando um movimento estético, mas para isso, precisaríamos de uma geração dispostas a romper com uma vigência, mas… quem tem consciência para ter coragem, quem vai romper com os padrões que se ruminam tempo após tempo, o mais sempre do mesmo?!, ainda mais em tempos de poéticas tão isoladas, dispersas, e, muitas vezes, carentes de um projeto consistente… em tempos onde os aparelhos ideológicos do estado e a falsa democratização massificada das mídias diluem e escondem os discursos autoritários… Quem?!
Essa situação é nossa angústia: não saber ao certo quem é o inimigo, não saber a quem atacar, não saber de onde vem o tiro.
Contudo, essa angústia não elimina uma necessidade básica e raramente suprimida de todo ser-humano: a expressão e a comunicação Libertárias, Anárquicas: A Contra-comunicação.
Na ânsia ociosa dessa necessidade, busca-se o melhor meio de supri-la, e este é sem dúvida a Arte. A linguagem poética é a mais libertária forma de expressão, a crítica pode até tentar cerceá-la, cercando de teorias, regras e classificações, padrões, hierarquias e cânones. Mas, é justamente quebrando as regras que a ela impõe que a arte sobrevive, se renova e (se) reinventa. Por meio da arte, pode-se [re] criar o universo, montar uma realidade paralela toda feita de signo. A ‘artinventiva’ é o verdadeiro espaço de democratização da linguagem, onde pode-se criar a sua própria negando todas as regras técnicas, gramaticais, morais, ideológicas. Negando a própria arte, deslendo e desconstruindo a tradição.
a arte transcende. a arte se [sub] verte e se [re] cria numa seqüência histórica [auto] remissiva de signos interpretantes… a arte é perigosa
Ela é perigosa, pois, produzindo-a, encontramos, enfim, o inimigo contra o qual lutar: o tão “admirável mundo novo” que é o padrão, a robotização, a maquinização, a tarefa ideológica da homogeneização. Tudo aquilo que nos cala e nos nega alteridade , que nos situa no mundo como meros fantoches ouvintes/receptores e nunca como falantes/produtores. Nós ouvimos (a televisão, a música no rádio, o jornal, a autoridade e até a Voz do Brasil!) e nunca somos ouvidos, como se não tivéssemos nada a dizer, assim, nos relegam à pior forma de isolamento: aquele, entre um mar de vozes, onde a sua se dilui, se perde e não é ouvida.
A expressão artística consciente, que se inscreve historicamente, que traduz para sua linguagem os signos de seu tempo e de um passado que pretende ler e iluminar em face de um projeto do presente que se projete para o futuro, como roteiro de uma nova história, põe em cheque toda forma de autoritarismo ideológico e estético dos meios de comunicação da suposta era das mídias democráticas. A representação do discursos e padrões por meio da metalinguagem, do signo icônico, que interpreta, crítica e evidencia sua vacilação, põe em colapso todos os padrões, toda a certeza, criando linguagem e estéticas próprias.
a produção artística é contra-poder, contra comunicação, libertação
Na aldeia de pedra que semeia ferro, somos sós, somos todos inelutavelmente sós, o sujeito [pós-(?)] moderno é terrivelmente só (ou você nunca sentiu a “punhalada” de que fala Baudelaire? Ou nunca esteve fora da roda, “como a dama da noite”?). O romance, como gênero literário da modernidade, é uma prova disso, basta lembramos as palavras de Walter Benjamin: “A origem do romance é o individuo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los”.
a escrita é uma experiência solitária. devemos, por tanto, guardar o que escrevemos em um baú ou queimar tudo?
Acreditamos que não, acreditamos que necessitamos da expressão e comunicação Libertária, sem nos preocuparmos com juízos de valor, sem nos preocuparmos se agradamos ou desagradamos, sem nos preocuparmos se ferimos morais ou convicções quaisquer que sejam, sem nos preocuparmos com a crítica, até porque, para haver crítica, é preciso que alguém ouça nosso grito. Melhor gritar e ser ouvido, ainda que desagradando, incomodando, do que permanecer eunucamente mudo e servil.
Nós não temos grandes pretensões, só queremos cantar, pouco importa se saímos do tom ( os essencial é querer cantar), pois é exatamente como disse Oscar Wilde: “Todos estamos na sarjeta, mas alguns de nós preferem olhar as estrelas”.
Assim, te convidamos ( tu que estás se dispondo a ler isto neste momento) a fazer o mesmo. Somos todos cantores, basta ter pulmões e querer cantar.
KamikASES é o nome da mais nova revista literária do Brasil
Por Walter Rodrigues.
Ontem, 02 de setembro de 2010, eu tive o prazer de prestigiar o lançamento da revista literária dos alunos de Letras da Universidade Federal do Pará, a revista Kamikases, que contou com o apóio e o patrocínio da Pró-reitoria de Extensão – PROEX e da Diretoria de Assistência e Integração Estudantil – DAIE.
Os autores da primeira edição da revista estavam quase todos lá, emocionados, falando sobre as dificuldades e as superações até a publicação. Contos, poemas, crônicas, história em quadrinhos, artigos e uma crítica cinematográfica sobre o filme “Nós que aqui estamos por vós esperamos”, Brasil 1998, de Marcelo Masagão, compõe esta singular e ousada revista literária.
Digo singular pelo fato de ser a primeira revista literária que leio e até mesmo ouço falar aqui na cidade de Belém; e ousada pelo fato de alguns de seus autores apresentarem uma expressão artística para além dos dogmas estéticos da linguagem amordaçada e presa a moldes ainda provincianos.
“Acreditamos que não, acreditamos que necessitamos da expressão e comunicação Libertária, sem nos preocuparmos com juízos de valor, sem nos preocuparmos se agradamos ou desagradamos, sem nos preocuparmos se ferimos morais ou convicções quaisquer que sejam, sem nos preocuparmos com a crítica, até porque, para haver crítica, é preciso que alguém ouça nosso grito. Melhor gritar e ser ouvido, ainda que desagradando, incomodando, do que permanecer eunucamente mudo e servil.”
O trecho acima nos dá uma palinha da força desses jovens autores. Um grito, um brado que só mesmo alguém que passou muito tempo acorrentado poderia dar. Estas palavras me fizeram lembrar um grande mestre da literatura universal, Charles Bukowski, que em sua época já antevia uma língua inglesa americana renovada, superando velhos moldes em busca de uma nova forma de expressão mais livre e americana:
“ - Acredito que a língua inglesa é a forma mais expressiva e contagiante de comunicação. Para começar, deveríamos ser gratos por possuir essa dádiva única que é ter uma grande língua. E se nós a desmerecemos, estamos desmerecendo a nós mesmos. Por tanto, vamos escutar com cautela, tomar conhecimento de nossa herança, mas ainda ter a ousadia de explorar e assumir os riscos da renovação da linguagem...”
(...)
“ - Devemos esquecer a Inglaterra e o uso que fazem da língua que temos em comum. Ainda que a utilização que os britânicos fazem da língua seja refinada, nossa variante americana contém muitos poços profundos cheios de recursos ainda não explorados. Esses recursos continuam desconhecidos. Deixem chegar o momento apropriado e os escritores apropriados que um dia haverá uma explosão literária...”
(...)
“ - Nossa cultura americana – ela disse – está destinada à grandeza. A língua inglesa, agora tão limitada, presa à sua estrutura, será reinventada e aperfeiçoada. Nossos escritores usarão o que poderíamos, creio eu, de americanês...”
(...)
“ - Cada vez mais descobriremos nossas próprias verdades e nosso modo próprio de falar, e essa voz estará despojada de velhas histórias, de velhos costumes, de sonhos velhos e inúteis...”
Quando pela primeira vez entrei em contato com a literatura, foi com um romance de Machado de Assis, e confesso, senti um estranhamento constrangedor. Sua voz parecia vim de muito, muito longe. Bom, concluir que livros eram para pessoas cultas e não para mim. Até que em meu aniversário de 18 anos, minha mãe me presenteou com “O Alquimista”, de Paulo Coelho. Li o livro em um dia, e ali entendi que livros poderiam ser legais e até mesmo vitais. Claro, que através dos livros de Paulo Coelho eu descobriria um universo de escritores. Tão bons em suas literaturas que meu autor favorito acabaria sendo deixado de lado, por agora eu o achar insuficiente para a minha ganância literária. Paulo Coelho já não me diria muita coisa, mas me serviu de portal para adentrar nesse maravilhoso mundo das palavras.
Esta pequena biografia exemplifica uma situação corrente em nossa sociedade: leitores sendo iniciados com autores e textos ultrapassados. Certamente isso espanta a maioria, lembro o quanto terrível e exaustivo foi-me ler “Amor de Perdição” de Camilo Castelo Branco para o Vestibular. Esta questão de leituras obrigatórias é um outro problema para o acesso de novos leitores no mundo da literatura. A verdade é que mais espantamos os interessados do que os seduzimos. Mas isso já é uma outra questão.
Com papel, edição e diagramação de alta qualidade, a Revista Kamikases, vem encher uma lacuna que há muito tempo esteve na expressão literária local. Esperamos que a revista não fique apenas restrita ao ambiente acadêmico, pois dessa forma ela estaria abafando sua notável grandeza e missão. Que ela possa estar presente nas bibliotecas públicas, nas bancas de revistas... enfim, que ela possa estar aberta para o público em geral, que embora sabermos ser bastante reduzido. Muitas vezes ouvir alguns escritores locais se queixarem que no Pará as pessoas não liam e não valorizavam os escritores da terra. Será que a culpa seria mesmo das pessoas que não liam os escritores da terra? Ou seria dos escritores e suas literaturas?
Há tempos eu sonhava em ler algo de algum autor paraense com a leveza, a universalidade e a liberdade de “A caronista” de Charles Alves e “Roxy” de Francisco Ewerton dos Santos.
Para ser mais emotivo e sincero, enchi-me de orgulho e esperanças ao ler esta revista. As coisas no mundo das letras paraense parecem estar mudando, e isso é bom. Parabéns a todos vocês que nos presentearam com esta revista!
Contato: coletivokamikaze@hotmail.com
REFERÊNCIAS
BUKOWSKI, Charles; Misto-quente. Tradução de Pedro Gonzaga. Editora L&PM Pocket, 2007.
kamikASES revista literária - ano I 2010. Edição n° 1. ISSN 2178-1559.
caríssim@s,
o tão esperado lançamento da kamikASES revista literária será na próxima quinta-feira...
lançamento da revista kamikASES dia: 02 / 09 / 2010 (quinta-feira) local: auditório Kaos (bloco Kb / UFPA) às 19:30 horas. ps - a revista será distribuída gratuitamente no dia do lançamento. ajude-nos a divulgar este evento.
Por ocasião do IV ECLEB - Encontro do Curso de Letras em Breves, deu-se o (pré-)lançamento da KamikASES Revista Literária, n°1, com sua "irmã siamesa", Plagium, n°6.
Muito em breve vamos lançá-las em Belém. Enquanto isso, fiquem com algumas imagens de Breves, do encontro e do (pré-)lançamento...
“O Tropicalismo é um neo-Antropofagismo”: assim definiu Caetano Veloso, em entrevista concedida a Augusto de Campos , o movimento que ajudara a fundar e deflagrar.A explosão do Tropicalismo (ou Tropicália), se deu nos Festivais da Música Brasileira, no fim da década de 60, quando “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso e “Domingo no Parque” de Gilberto Gil chamaram a atenção da mídia e do público por trazerem uma proposta inovadora em suas letras e arranjos, misturando Rock’n’roll, música experimental de vanguarda e ritmos brasileiros. Pouco depois, seria lançado o LP Tropicália, do qual participaram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Torquato Neto, Rogério Duprat, Os Mutantes, etc.
Neste texto, procuraremos investigar mais afundo esse que é “antes de tudo um movimento dessacralizador. Irônico e parodístico” (SANTANA, 1977, p. 233), segundo nos diz Afonso Romano de Santana. Observar a importância deste movimento para a formação da (contra-) cultura brasileira no que se chama modernismo tardio ou pós-modernismo, e sua poética dessacralizadora que mescla o popular e o erudito, que incorpora o “canônico” a “cultura de massa” (ou vice-versa), que deglute os monumentos de cultura das fontes irradiadoras (seja do colonialismo ou neo-imperialismo), carnavaliza-as e descentra sua influência.
A partir daí, podemos observar as origens imediatas e remotas da Tropicália, que busca desde a tradição barroca, do já antropófago Gregório de Matos, retoma as propostas do modernismo de 22, principalmente as lançadas no “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade (“Tupy, or not Tupy...”) e, dessa forma, se relaciona com outros movimentos de vanguarda de sua época, como o Cinema Novo e o Cinema Marginal, o Poema-Processo, a Poesia Marginal, a psicodelia hippie, todos marcados pelo seu aspecto experimental e iconoclasta, que mescla elementos heteróclitos, de diferentes linguagens e contextos, para criar uma arte autêntica de caráter híbrido. É importante ressaltar que tudo isto se deu em plena ditadura militar, e a estética arrojada da Tropicália era também uma forma de velar uma crítica, dessa forma, o protesto social adquiria caráter estético, de maneira que forma e conteúdo se uniam em uma proposta revolucionária que extrapolava para o comportamento: as cores, roupas e danças, a libertação dos instintos e o caráter muitas vezes andrógino dos artistas dialogavam em um sistema de signos constituindo uma mensagem subversiva.
O grupo Secos e Molhados surge pouco depois da deflagração da Tropicália. Formado por Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, lançaram dois discos, o primeiro em 1973 e o outro em 1974, trazendo ainda as concepções estéticas do movimento, evidenciadas nas performances e visual pitorescas e na musicalização de poemas de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Julio Cortázar ressignificando estes textos transpondo-os para outra realidade histórico–social e retomando, ainda, a proposta de Mallarmé, de [re]junção entre música e poesia.
Dessa forma, o Secos e Molhados talvez refine ainda mais a proposta tropicalista de transgressão estética e comportamental, trazendo em suas letras críticas veladas através de jogos intertextuais, confirmando em suas canções a equivalência entre os termos “antropofagia”, de Oswald de Andrade, “intertextualidade” de Kristeva e “dialogismo” ou “carnavalização” de Bakhtim, e o poder subversivo que essas práticas textuais assumem por meio da paródia, quando o dominado assume a força do discurso dominante para denunciar as próprias instituições de poder, onde o nivelamento da arte dita “elevada” e a arte “baixa”, popular, é uma forma de provocar e atacar a cultura oficial, elitista e colonizada, colocando a expressão da margem no centro da discussão e derrubando as hierarquias. Isto é, antropofagia e carnavalização são meios de inversão e resistência.
Para melhor ilustrarmos essas afirmações, cabe partirmos para a análise de uma letra dos Secos e Molhados. Trata-se de “El Rey”, canção composta por Gerson Conrad e João Ricardo e lançada no disco de 1973:
“Eu vi El Rey andar de quatro
De quatro caras diferentes
De quatrocentas celas
Cheias de gente
“Eu vi El Rey andar de quatro
De quatro patas reluzentes
De quatrocentas mortes...
“Eu vi El Rey andar de quatro
De quatro poses atraentes
De quatrocentas velas
Feitas duendes”
Devemos observar, primeiramente, que o texto é permeado pela relação entre três idéias: Poder — decadência — resistência. El Rey é o signo do poder. A forma castelhana nos remete ao poder colonial: opulência, riqueza e dominação. Entretanto, o primeiro verso da canção diz: “Eu vi El Rey andar de quatro”. Neste verso entra também o elemento da decadência. O rei de quatro é a ridicularização do grandioso,e, quando no verso seguinte, lemos “quatro caras diferentes”, observamos que a palavra “cara” traz um sentido diferente de “face” ou “rosto”, pois, apesar de serem aparentemente sinônimos, a forma utilizada no texto é cotidiana, uma gíria comum em contextos informais e referente ao que é baixo, sem apresentar qualquer reverência ou respeito, então aqui a palavra “cara” aparece como índice se dessacralização.
Quatro caras: o poder se apresenta de várias formas, muda as máscaras (as personas, como no teatro grego), transforma o discurso. Assim como em um teatro, o poder muda de máscaras, e, assim como em um carnaval, suas máscaras trazem o brilho da riqueza na forma de extravagância. E, como bem traduz o barroco, o grandioso e o grotesco — a opulência e a decadência — andam juntos. O índice do despotismo surge no verso seguinte: “De quatrocentas celas cheias de gente”. Aqui vemos que o poder se despersonaliza, muda de máscaras e de discursos, mas, seja o discurso colonial imperialista, seja o neo-liberal pretensamente democrático, vemos as história dos vencedores marchando sobre os corpos dos vencidos, e a tirania aparece no fim desta primeira estrofe na forma da supressão da liberdade do outro.
A estrutura da primeira estrofe se repete nas seguinte, isto é, o estribilho inicial, no segundo verso, “patas reluzentes” aparece no lugar de “caras diferentes”, apresentando, contudo, a mesma estrutura morfológica: caras/patas, assim como diferentes/reluzentes, apresentam o mesmo número de sílabas, as silabas tônicas na mesma posição e as mesmas terminações, mantendo a cadência e a melodia do texto. Além diso, essa correspondência estrutural anuncia que também será mantida as relações de idéias, pios, “quatro patas reluzentes” podem referir-se tanto à imagem de uma montaria, símbolo de altivez cavaleiresca, ou às quatro patas do próprio rei. O reluzente da riqueza vem novamente associado ao rebaixamento da imagem grotesca do “rei de quatro”.
Cabe aqui enfocarmos a peculiaridade da palavra “morte” dentro do texto. Como podemos observar, o poema é dividido em três estrofes, duas de quatro versos, e uma, à qual nos reportamos agora, de três. Porém, na cadência da música, o lugar do quarto vrso da segunda estrofe fica vazio, ou melhor, é preenchido pelo silêncio. Silêncio expressivo. Os três pontos que seguem a palavra “morte” corroboram essa idéia. Assim, podemos compreender a morte como forma maior de violência e coação, a pena capital empreendida pelo poder, sobre a qual não se faz necessário o uso de nenhum adjetivo: diante da (ameaça de) morte, o coagido deve calar, não por respeito à autoridade, mas por medo de sua força.
A terceira estrofe traz a mesma estrutura das anteriores: após o estribilho, surge, no segundo verso, “poses atraentes”, que se relaciona morfologicamente a “caras diferentes” e “patas reluzentes” reiteram a idéia da elegância atrativa ligada à imagem de riqueza ostentada pelo rei se relacionando à extravagância humorística, por meio da imagem caricatural atribuída à elegância e à riqueza na paródia carnavalizante. E nos dois últimos versos temos novamente o índice da dominação em “quatrocentas velas”. Num primeiro momento, o vocábulo “velas” pode ser visto como índice da dominação colonizadora se associado metonimicamente às caravelas que cruzaram o oceano subjugando povos. Por outro lado, “velas” pode também ser relacioonado metonimicamente à morte. Visto por essa segunda perspectiva, a palavra “duentes”, presente no último verso, apresenta-se como uma chave de leitura por ilustrar como a resistência se integra no texto.
Este ente fantástico, muito comum na mitologia céltica, é um símbolo de travessuras, de caráter semelhante aos sátiros da mitologia grega. Dessa forma, o duende é o que satiriza, ironiza, parodia, ridiculariza, ou seja, uma figura carnavalizante. As quatrocentas velas, quatrocentos mortos — políticos, culturais, etc. —, os vencidos e marginalizados dos centros de poder, erguem-se para novamente se opor, utilizando da carnavalização como instrumento de resistência. A carnavalização, apresentando-se como paródia, isto é, reescritura e transformação de outro texto, torna-se antropofagia quando o autor imerso em uma situação desfavorável, ou subdesenvolvida, como diz Antonio Candido, isto é, na situação de dominado, assume o texto do outro, do dominador, e o transforma. Dessa forma, como diz Robert Stam:
O artista não pode ignorar a presença da arte estrangeira; tem de engoli-la, caranavalizá-la e fazer uma reciclagem para objetivos nacionais. ‘Antropofagia’, nesse sentido, é um outro nome para o que Kristeva, traduzindo Bakhtin, chamou de ‘intertextualidade’ e que o próprio Bakhtin chama de ‘dialogismo’ e carnavalização. (STAM, 1992, p. 49)
Nesse sentido, a carnavalização como resistência apresenta-se no plnao estético e textual assim como no plano social:
[O carnaval é] uma celebração coletiva que funciona como um modo de resistência simbólica, da parte da maioria marginalizada dos brasileiros, às hegemonias internas de classe, raça e gênero. Para Da Matta, o carnaval é o lócus privilegiado da inversão. Todos os que foram socialmente marginalizados invadem o centro simbólico da cidade (Idem, Ibidem, p. 50.)
E, mais adiante, afirma que “A lógica do carnaval é a do mundo de pernas para o ar, onde se zomba dos poderosos e onde reis são entronizados e depostos” (Idem, Ibidem. p. 52)
A carnavalização é a principal forma de subversão do oprimido contra o discurso oficial do dominador e é amplamente utilizada pela Tropicália e, mais especificamentes, pelos Secos e Molhados.
Nesse ponto, cabe ainda ressaltar o diálogo do texto com a tradição literária colonial, marcadamente o Barroco. Esse diálogo é já evidente na linguagem medievalista do texto, mas pode ser aprofundado observando-se algumas características barrocas dentro do poema em análise. Uma delas é o exagero das imagens. Tal característica é evidenciada não só nas imagens exóticas e grotescas, mas também com a utilização do conceptismo, recurso que cria um jogo verbal, o qual se estende a um jogo de idéias antitéticas. Assim, os números quatro e quatrocentos se referem ao exagero do poder: o quatro a riqueza que atrai, o quatrocentos a tirania que oprime. E, desse jogo de idéias antitéticas que desvela a decadência daquilo que é grandioso através da ironia e da paródia, resulta a resistência. Gregório de Matos é um baluarte dessa prática, com suas elaboradas sátiras ao governo colonial antecipou a Antropofagia oswaldiana, quando parafraseou o poema “Triste Tejo” do português Francisco Rodrigues Lobo em seu ácido “Triste Bahia”.
Dessa forma, nota-se também, o aspecto metalingüístico de “El Rey, pois evidencia a atitude do artista Latino Americano, que, ao tomar consciência de seu subdesenvolvimento , não se isola da cultura dominante, símbolo do poder colonial outrora, e neo colonial atualmente, e sim devora-a, parodia e dessacraliza, impondo sua resistência.
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Augusto de. O Balanço da Bossa e outras Bossas. São Paulo: Perspectiva. 2003.
CANDIDO, Antonio. “Literatura e Subdesenvolvimento”. In: América Latina em sua Literatura. São Paulo, Perspectiva/ UNESCO. 1972. p. 343-362.
SANTANA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Vozes.
SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar no discurso latino americano”. In: Por uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva. p. 11 – 28.
STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Editora Ática, 1992.
*graduando em letras com habilitação em português.
MADRUGADA
Confiava idéias mirabolantes encostado na máquina de refrigerantes da loja de conveniência. Foi até a estante de livros baratos e ficou namorando uma edição de “nada de novo no front”, sempre quisera lê-lo. Virou-se para a atendente, vinte e poucos anos desinteressantes, ela o observava com a expectativa de uma megera, como a ansiar que ele fizesse algo de errado. E ele nem ai.
- Quanto é este livro?
- O preço está na capa.
- Hum - mais falando para si - 10 contos.
Folheou rapidamente, parou, virou-se novamente para ela.
- E o que fala a história?
- Como eu vou saber? – foi a resposta dada pela singela moça que vendia livros, mas que, provavelmente, nunca tinha lido um.
Estudou o livro mais um pouco, abriu, folheou, contou páginas, leu trechos, fez uns cálculos silenciosos e foi até a atendente com o livro numa mão enquanto a outra se remexia no bolso. Arrancou 5 páginas, deixou 35 centavos no balcão junto com o livro mutilado e saiu feliz pela sua mais nova aquisição.
A atendente, pega de surpresa, nem teve tempo de entender, mas sabia que seria ela que teria arcar com o prejuízo. Colocou o livro na estante, azar de quem o comprasse.
..................
Andava pelas ruas soturnas e quase vazias, tirou um cigarro amassado do bolso e uma caixa de fósforos de algum lugar. Só tinha dois palitos. Acendeu um, mas a mãe-natureza em sua imensa sabedoria achou que seria um bom momento para presenteá-lo com uma leve brisa, e o fogo achou que esta seria uma morte digna, resolveu bater as botas.
Fechou os olhos e gritou em sua mente um palavrão que só ele conhecia (e do qual sentia muito orgulho, por isso evitava falá-lo em voz alta). Seguiu até o canto da mercearia do Bigode, que estava fechada, para dar o último tiro. Num único movimento que demonstrava destreza soberba mesclada com um desespero para fumar, acendeu o cigarro.
Sorriu.
Seguiu andando.
Ao dobrar na esquina depara-se com um sujeito sentado na calçada que, ao lhe ver, levanta-se e vai cambaleante em sua direção.
- Tem um irmão desse, mano? – disse apontando para o cigarro que já ia pela metade.
- Infelizmente para nós dois, não.
- Pô.
- Tá afim de dividir?
- De boa mano.
Ficam fumando calados por um tempo, apreciando o ultimo trago até a bagana. Quando acabam, o sujeito mete a mão no bolso e tira uma faca.
- Passa a grana mano!
- Heh, não tenho.
- Porra meu, eu não tô brincando.
- Eu também não.
- Eu vou te furar!
- Então tu vai ser amaldiçoado.
- O quê?
- Bem, os ciganos acreditam que quando dois homens dividem um cigarro, cria-se um vínculo entre eles mais forte que o...
- Foda-se os ciganos!
- É, eles já se foderam faz tempo.
-Me dá o que tu tem.
Mete a mão no bolso e tira uma caixa de fósforos vazia, cinco páginas arrancadas de um livro, e um cigarro.
- Porra, tu disse que aquele era teu último! – diz o assaltante.
- Mas era, esse ai é do meu cachorro, tenho que guardar senão ele me morde quando eu chego em casa.
- Caralho, teu cachorro fuma?
- Na verdade não tenho cachorro.
-Porra, tu é muito mentiroso!
- Olha, se tu vai me roubar, rouba logo. Não vou ficar aqui sendo insultado!
Coloca as coisas na mão do ladrão e sai andando. O ladrão aperta o passo fica ao seu lado.
- Desculpa ai – fala em tom conciliador – não quis te ofender.
- Tudo bem.
- Olha, toma tuas coisas, vou ficar só com teu cigarro.
*graduando em letras com habilitação em português.
A GLAUCO MATTOSO
fecha os olhos
para derramar teu silêncio
teu vinco
teu vínculo com a palavra
instintiva
teu verbo virgem
(verbo-hímem)
tua língua orgásmica
MEUVERBOÉVERMELHO
meuverboévermelho
é batom de
puta
epitélio
carne
verme
menstru
ação
escrita viva
vulva secreta
a glande que desvela-se
vinda de dentro do Ví
Cio
UM QUASE-SONETO GLAUCOSIANO
me res
pau
do no
glau
co
mat
oso
aquo
so laico
metoso cor
te
no oco
quero ser
glauco mattoso
AO GUAXE
umagarra
fa não é um
a garra
fa é ant
es uma (quase) arte
CARALHO É COISA É COISA
caralho é coisa é coisa
pra caralho caralho não é
nome caralho é peça de xadrez é
fruta escrita sagrada
palavra fudida
não sou o caralho que gosta
ria sou um cara( solitário sem o )alho que permita
sou a permuta a pica a puta da esquina a
vida
i XEQUE !
i xeque !
lança-
palavras
descalças
sobre um cavalo vermelho
! zás i
come-palavras
saltitantes
sobre um tapete vermelho
o poema cai
atira uma toalha vermelha
lhe falta um dente
onde estará?
terá sido levado pelas fadas?
ou
atirado sobre um telhado-tabuleiro
vermelho de sol?
Projeto do Coletivo Kamikaze em parceria como Centro Acadêmico de Letras da UFPA destinado, exculsivamente, à publicação da produção literária ou lítero-científica de discentes do curso de letras da UFPA (graduação ou pós), devidamente matriculados em suas faculdades.